Luxúria

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Ele gostava das minhas pernas. Talvez ainda goste e prefira como elas estão hoje, não importa. Me gostava inteira e dizia. Dou um meio sorriso ao abrir a despensa e a geladeira, tem algo dele ali. Sempre tem. Numa passada de olhos pelas embalagens de azeite, granola, mel, arroz, café e torradas, lembro dele e lembro de algum outro.

Vão-se os amores e aquela história toda… ficam os sabores e o consumo da geleia X porque gosto do vidro e do fato de ser menos doce, mas sobretudo porque é surpreendente a influência da luxúria em nossos hábitos de consumo. Ser apresentado a determinado ingrediente naquela janela de torpor entre o que está prestes a acontecer e algumas boas horas após o acontecido pode fazer com que você nem olhe pros lados e pegue tal sorvete no supermercado sem pestanejar, a despeito de não achar que seja o mais gostoso e de tantas outras opções disponíveis. E que a marca frequente o seu freezer para todo o sempre, até você achar que foi sua a descoberta, ou que ele é mesmo o sorvete mais gostoso do mundo. É bem provável que passe adiante a dica, ou a memória afetiva, criando um fio invisível entre amantes de corpo, de alma e de comida.

Ele gostava da minha comida e dizia. Talvez ainda goste e não sei se preferiria o menu daquela época ou o de hoje. Mas daria um meio sorriso ao abrir a despensa e a geladeira e se ver ainda ali, naquela latinha de chá ou no copo de requeijão. Talvez se sentisse importante por ter influenciado de alguma forma a cozinheira. E era, sempre vai ser.

Não importava se o bife estivesse duro, o arroz sem sal, as lichias mal escolhidas, o curry apimentado demais. Metade gentileza e metade torpor, enquanto eu amaldiçoava minha falta de jeito, ele elogiava e repetia as poucas receitas que me aventurava a fazer. Dizia que eu era sua Dadivooooosa* com uma voz inimitável e ríamos muito. A luxúria, além de influenciar o consumo, é generosa com pequenos reveses culinários.

Sei que ele adoraria provar a farofa de sriracha e a sobremesa de gengibre. Não lembro se alguma vez mencionou gostar ou desgostar de miúdos – por alguma razão, não falamos a respeito. Gastronomicamente curioso e destemido, certamente provaria a tentativa de moela confitada na gordura de pato que fiz ontem às sete da manhã, aquela que quase carbonizou porque a chama do fogão estava muito forte e porque me distraí com outras coisas. Nem toda a luxúria, gentileza e torpor do mundo o impediriam de fazer uma careta e dar uma gargalhada.

A moela não tinha salvação e lá se foi um pote precioso de gordura de pato. E enquanto eu punha uma panela com água, anis, cravo e canela para ferver e amenizar o cheiro de gordura queimada que grudou na casa toda, praguejando, amaldiçoando minha falta de jeito e franzindo o cenho, ele me puxaria pra dançar, diria baixinho que eu era sua bailarina, esqueceria da comida, voltaria a atenção para as pernas.

*Foi quem me chamou de Dadivosa pela primeira vez, muito, muito antes de o blog existir <3



7 comentários em “Luxúria

  1. Helena Gasparetto

    Querida Fê,

    Eu sempre quis saber de onde surgira esse formoso apelido…

    Mas se suas pernocas chamaram-lhe a atenção, tenho por certo de que seu jeitinho e seu carinho o fizeram ficar…
    E não importa por quanto tempo; por quais panelas ou sussurros.
    O importante é que você tenha essas histórias na memória <3
    Beijo grande

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  2. Ju

    Que lindo e divertido (por elocubrações aqui internas) e com essa sua leveza que eu não sei como se sustenta, com tanta densidade. Como tesouros das profundezas expostos em balões de gás, e se visita pulando de um em um na gravidade da lua.
    Além do moço, o deus das pequenas coisas também deve estar muito feliz com o lindo altar que você fez pra ele.
    ;*

    Responder
  3. Graça

    Mais uma vez fiquei maravilhada com o seu jeito de cozinhar palavras…Essas emoções, tão bem descritas, ficam na memória como as outras, as gastronómicas 🙂

    Adorei

    Beijos

    Responder

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